sábado, março 26, 2005

Carta ao Pai

Tenho para mim que o meu principal problema é lidar com os meus sentimentos, ou, pior, com a ausência deles. Muito pequeno percebi o quão difícil é gostar das pessoas e tomei uma atitude pouco provável para uma criança de mais ou menos 7 anos.

Lembro-me claramente do dia em tomei a decisão de que não sentir nada por ninguém era a estratégia mais segura e, por isso, desejável para a minha vida. Devo dizer que o que me mais recordo não é exatamente da situação, mas sim do momento psicológico em que parei para pensar e tomei a decisão de que não deveria gostar mais de ninguém.

A pergunta que surgiu para mim foi: por que uma pessoa que gosta de mim é capaz de me fazer sofrer? Descobri naquela oportunidade que as pessoas, mesmo gostando muito de você, podem te fazer sofrer horrores. Dai então decidi que a melhor estratégia era não sentir, de todo. Afinal assim eu não corria o risco de sofrer a fortíssima desilusão de ser ferido por alguém de quem você gosta.

Perceba que é uma estratégia totalmente segura para a vida e foi isso que me seduziu naquele momento. Ela estabelece uma espécie de “média” dos sentimentos ao travar uma cunha em tudo que possa ser especialmente bom, mas que em seguida, para mim, se tornaria extremamente ruim. O resultado foi que acabei diminuindo as margens para todos, repito, todos, os meus relacionamentos que envolvessem sentimentos – e isso explica muita coisa sobre minha vida.

Havia o claro inconveniente de não me aproximar das pessoas. Mas não fazia muita diferença naquele momento. Afinal as pessoas eram detestáveis ao ponto de fazer os seus mais queridos sofrerem. Desta forma, acabei chegando à conclusão de que a humanidade não merecia meu padecimento. Em resposta decidi priva-la do meu relacionamento - com o que tinha certeza ela também não iria se importar. Ficaríamos um de costas para o outro enquanto a vida nos obrigasse a conviver. Conviveríamos no que fosse estritamente necessário e nos toleraríamos no restante do tempo diante da troça que nos pregavam.

Mas eu percebi, lá pelos 14 ou 15 anos que essa média nos impede de ter aquilo que boa parte da vida é e a partir do que ela se justifica. Oscilações. Tirava-me a oportunidade de conviver com as pessoas, que, sim, eram capazes de provocar dores mordazes, mas que são imperfeitas. No extremo, até eu mesmo poderia provocar sofrimentos nas pessoas que gostavam de mim e, acredite, eu tive muita dificuldade em aceitar isso.

Talvez seja verdade que o amor possa conviver com o sofrimento. Talvez até sejam sinônimos. Tenho para mim que são pelo menos equivalentes. Quem é que não tem medo de amar demais outra pessoa? Quem é que já não teve medo de se tornar suscetível aos caprichos e imperfeições de outra pessoa? Quem é que não já magoou uma outra pessoa só pela vontade de matar um pouco dela dentro de si e assim tornar-se menos suscetível?

Minha saída para essa situação foi escrever. No primeiro momento escrever era a maneira de criar um mundo que fosse só meu, um que eu pudesse controlar totalmente, no qual, claro, não haviam decepções. Mas a minha ingenuidade não me permitia perceber que não se controlam as histórias, elas correm sozinhas. Os personagens, uma vez criados, são pessoas independentes. Depois escrever se tornou uma forma de extravasar, que é o que faço agora, ainda que não de uma maneira literária.

Acho que as pessoas estão presas em uma fazenda de formigas em que Deus quer testar nossas boas qualidades jogando sobre nós todo tipo de desafio, como a escassez e as doenças. Isso o torna um cara extremamente caprichoso ou insensível. Mas isso também é assunto para outra conversa.

Quanto à morte do vô, e aqui volto dessa enorme digressão, jamais pensei que iria sentir tristeza. Primeiro, quando ainda muito distante desses acontecimentos todos, julgava que fosse ser absolutamente indiferente quando perdesse um próximo qualquer. Achava que iria acabar me contentando com a brincadeira de “Deus” ter nos feito mortais e aceitar a morte sem dor, como que diante de um fato inevitável e distante de minha compreensão racional.

Isso só mesmo quando distante, a piora progressiva da saúde do vô me fez quere acreditar que aquilo que eu estava sentindo era só saudades antecipadas. A minha preparação foi no sentido de que, ainda que diante de um destino absoluto, a morte seria algo com o que teríamos que tão somente nos conformar e sentir saudades. Mas nada disso aconteceu.

Eu fiquei mesmo foi triste. Puto com a morte, irado com “Deus” por ele ter-nos disposto com peças sobre um tabuleiro para sua brincadeira. Triste com a partida do vô, que sempre – digo isso firme de que não estou fazendo nenhuma concessão injustificável a um morto, tal como é dado costumeiramente – foi um exemplo em vários sentidos. Talvez haja agora muito de saudade, mas, pelo menos, existe uma porção igual de tristeza.

E o que quero dizer com isso tudo? Que a distância daqueles dias me fizeram perceber que eu sou, de novo, um cara capaz de sentir. Aprendi que hoje sou novamente capaz de ter sentimentos. E que com isso acho que hoje sou melhor do que ontem. Espero não estar sendo piegas. Não quero dizer que Deus fez isso tudo para me mostrar qualquer coisa – porque se eu achasse que assim fosse, seria uma arrogância enorme, e se assim fosse, mesmo sem eu saber, Deus seria um grande filho da puta ao causar um monte de danos a um monte de gente só para me dar essa lição.

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