shuffle
Nos anos de piano, naqueles em que eu pulava de tarsila pra jandira pra outros instrumentos tão ordinários quanto eficazes, judiados pelo clima brutal da savana, maltratados por cigarros imprudentes ou abandonados pela mais pura preguiça humana, sempre uma culpa eu tentava esconder por detrás os feltros ou debaixo das partituras rotas de cansadas. Meus rasos ouvidos, sempre em memórias triunfantes, orgulhavam-se da constante denúncia: culpado.
Ainda que padeço dessa maturidade duvidosa, já há bons outonos calculei que umas culpas, uns desejos, outras buscas, algumas idéias, poucas iluminações e um incansável número de sonhos insistentemente me acompanham e acompanham. Não suponho que isso me transfira à esquisita categoria dos seres exclusivamente especiais. Não, não. Poucas primaveras depois, sem grandes espantos, foi-me soprado que o mesmo pacote era seu e dela e de muitas muitas cartas de baralho outras.
Uma culpa assim terrível e miseravelmente simples. Não conseguia respeitar a dada ordem das peças musicais. Nem a ordem que eu devia seguir nos meus estudos ou nas minhas apresentações, e tampouco conseguia obedecer a própria ordem ditada pelos autores. Eu adorava começar pela dança frenética, quase desesperada, que geralmente era a derradeira parte das sonatas. E depois os allegros. E por último as partes tristes. Possivelmente eram as partes de que mais gostava. Outras vezes eu tocava o funeral da boneca, pra em seguida tocar a boca nova e só por último tocar a boneca doente. Simplesmente as músicas pareciam assim mais bonitas. Contudo, eram afrontas ao esforço lógico e racional de gentes sofisticadamente talentosas e brilhantes.
Dois ou três anos atrás, um espelho teria facilmente anunciado em cacos minha perplexidade ofendida ao confrontar o entusiasmo de um amigo com o lançamento de mp3 player que nada prometia além de tocar as músicas em total aleatoriedade. Ora, que tipo de bufão se divertiria em custear voluntariamente o caos?
Mais tarde, ontem ou anteontem, faltou na companhia de ônibus meu costumeiro assento na poltrona de janela do lado direito. Quase pânico. Ralhei outra vez o maldito monopólio rodoviário no trans-pequi. Mas uma controversa poltrona sorria obliquamente pra mim da janela esquerda. Fiquei com ela. Pouco a reclamar... é simpático o ônibus novo, com seu visual honesto e descomplicado, seu conforto prático e ainda sem o penetrante e enjoativo cheiro de café cansado misturado com banheiro de outros dias. A vista seguiu-se de um ineditismo encantador. Seria mesmo a combalida rota do trans-pequi tantas e tantas vezes percorrida? Pus meus baratos fones de ouvidos onde por justo e óbvio deviam estar. Por que diabos não usava mais espaço pra aumentar meu acervo de músicas? Por que eu não renovava o tal estoque, no mínimo? E aquele céu esquisito, de sol avesso e cenários tão confusamente bonitos? Tudo tão tão torto, embaralhado. Tão extraordinariamente encantador.
Em outro sorriso, meu, nesse turno, vi depois da janela o coringa ideal. Esse experimentador incansável capaz de criar um sem-número de jogos só com a mera probabilidade das cartas. Combinação e recombinação. A gestação do impressionante instante em que o sexto sentido vence a nossa lógica, a razão de todos, e marca o mundo com um equilíbrio único. A luz de um impressionismo particular. Ora, tudo isso pode parecer poesia demasiada pra pouca desordem, seja programada ou completamente alheia e aleatória. Mas o prosaico ato de shuffle uma sincronia cria nova harmonia, no mínimo. Coisa que ainda pode ser muitas vezes dissonante, algumas interessante e vez ou outra extraordinária. E muito talvez o mais divertido desse ludo é mesmo voltar a volta e perceber o jogo daquele pacote. Uma culpa foi promovida e elevada de passo em tombo, cheirou busca, soprou idéia, morreu iluminada numas luzinhas pequitinhas, mornas, minhas. Mas claras e novas. Não tenho bem certeza, mas posso jurar que por um instante o anil soltou a violeta e roubou um beijo da vermelho. Agora o sol já se pôs. Melhor tomar café-da-manhã.